segunda-feira, 18 de julho de 2011


EXÍLIO E MEMÓRIA1

Ao chegar, em 1972, aos Estados Unidos, Joseph Brodsky trazia como moeda de troca, uma visão aguda e uma poesia nascida numa tradição literária poderosa como a russa. Dar-se-ia uma viragem completa em sua vida e na sua obra que culminou com o prémio Nobel de 1987.
Os únicos dados que se conheciam sobre o jovem poeta de 32 anos era o facto de ter estado preso por "parasitismo social" e a respectiva expulsaõ do seu país. Na Rússioa dos anos 60, a repressão política e intelectual veio mostrar, uma vez mais, que antigas premissas continuavam a orientar a actuação do estado contra a liberdade individual.
Em certa medida, Brodsky alonga a tradição acmeísta, mas promove uma renovação necessária dando continuidade ao processo de permuta entre a literatura russa e a de língua inglesa, sobretudo aquela representada por W. H. Auden, Robert Lowell, Richard Wilbur. Mas não esquece a lição recebida de Akhmatova, quem primeiro descobriu e divulgou o talento do poeta.
Desde o início do seu exílio nos Estados Unidos, teve como protetor Auden e a admiração de figuras como Susan Sontag, que lhe dedicou um dos seus mais importantes livros, Under the Sign of the Saturn. Brodsky publicou váriso livros de poemas2 como A Part of Speech, To Urania, uma peça de teatro, Marbles, e a narrativa Marca de Água3.
Há uma versão brasileira de Less Than One4, um livro em que a memória e o ensaio se misturam. Brodsky deixa transparecer o movimento deambulatório e o fascínio pelas cidades e os espaços. À procura de uma geografia pessoal e inatingível, o poeta apreende cada paisagem através do conhecimento interior. Ao discutir a mudança do nome de São Petersburgo para Leninegrado, o poeta aproveita para fazer referências políticas, históricas, literárias e urbanísticas da cidade. No texto "Fuga para Bizâncio", uma viagem a Istambul serve para interrogar aspectos do império romano, da derrocada do cristianismo e do advento do islamismo.
A visão de Brodsky esquadrinha tudo impregnada daquela "qualidade estereoscópica da percepção" que ele reclama para poesia. Nos ensaios que tratam de autores regressa aos que habitam sua constelação pessoal: Anna Akhmatova, Mandelstam, Auden, Derek Walcott e os romancistas russos. Nos ensaios "A Musa Lastimosa" e "Para agradar a uma sombra", é o discípulo a render homenagem aos mestres - no texto sobre Auden vê-se até que ponto foi importante para o poeta exilado russo: "Eu o vi a última vez em julho de 1973, num jantar na casa de Stephen Spender, em Londres, Wystan estava sentado à mesa com um cigarro na mão direita e um cálice na mão esquerda, e falava sobre o salmão frio. A cadeira era muito baixa e por isso dois volumes do Oxford English Dictionary haviam sido dispostos sobre o assento. ocorreu-me naquele momento que estava diante do único homem que tinha o direito de se sentar sobre aqueles dois volumes"5
No capítulo sobre Mandelstam, o poeta salda uma dívida com um certo tom sedicioso:"É uma voz bruxuleante, como um fósfora aceso em plena ventania, mas decididamente inextinguível. A voz que permanecerá, mesmo com o desaparecimento do seu dono. Sinto a tentação de dizer que ele era um Orfeu moderno: ao descer para o inferno, nunca mais voltou. Enquanto isso, a sua viúva se esgueirava por 1/6 da superfície da Terra, protegendo um pequeno vaso, onde escondia pedaços de papel com os versos do marido, decorando-os à noite para o caso de serem encontrados pelas Fúrias munidas com mandados de busca. São estas as nossas metamorfoses, são estes os nossos mitos"6.
As palavras de Brodsky reavivam a memória de uma geração impedida de de falar pela barbárie dos totalitarismos. Foi o herdeiro legítimo destas vozes.

1 Menos que Um, São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

2 Poemas, trad. Carlos Leite, Lisboa, Cotovia, 2001.

3 Marca de Água, Lisboa, D. Quixote, 1993.

4 Op. Cit.

5 Idem, p. 146

6 Idem, p. 87.

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