segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011




(Uma pausa para uma homenagem)
No final dos anos 70, início dos 80, conheci um dos maiores poetas brasileiros (infelizmente, o reconhecimento ainda não se deu), Max Martins. Através dele, travei amizade com o filósofo, ensaísta e crítico paraense, Benedito Nunes; e por sua via, tornei-me amigo do romancista Haroldo Maranhão, quando vivi no Rio de Janeiro.
Ambos pertenceram a uma geração intelectual surgida no Pará, responsável por abrir as portas para a modernidade literária. Podemos ainda agregar a esta geração, a figura do poeta Mário Faustino, embora não fosse paraense de nascença. Isso tudo indica que o grupo foi imprescindível para a história intelectual do Norte do Brasil.
Benedito Nunes começou a granjear o reconhecimento pela sua obra, tal como Mário Faustino ao mudar-se para o Rio de Janeiro, relativamente cedo. Figuras como Clarice Lispector ou o filósofo francês Michel Foucault ( a foto acima atesta a passagem do francês pela ilha de Mosqueiro, onde foi várias vezes) foram conquistadas pela sagacidade deste paraense baixinho, mas cujo vigor intelectual era enorme.
Os textos publicados até hoje neste espaço devem muito ao Benedito Nunes. Sem ele, e a obra que deixou, jamais teria escrito uma linha sequer. De certa maneira, procuraram, em vão, estabelecer um diálogo distante com aquele que soube interpretar o fenômeno poético como ninguém. Sem a leitura da obra do Benedito, jamais teria a coragem de debruçar-me sobre um determinado autor. Foi o meu mestre tácito, o exemplo tenaz do que se deve procurar fazer quando se escreve sobre poesia.
Assim como as obras do Max e do Haroldo são exemplos, até hoje, da genuína criação literária.
A única forma que encontro para despedir-me do Bené, é publicando um dos últimos textos que escrevi. Neste caso, sobre um poeta grego pouco conhecido no Brasil, Odysseas Elytis.
Um gesto simples, mas para mim profundíssimo, para demonstrar minha dívida, admiração, gratidão e amizade por esse heleno-paraense que jamais esquecerei.
Adeus, Bené.
Jorge Henrique Bastos
GRÉCIA: ENTRE O CAOS E A BELEZA1
É curioso constatar - já que somos herdeiros da democracia nascida em Atenas - que a Grécia tenha sido fustigada ao longo da sua história contemporânea por inúmeras convulsões políticas, guerras civis e ditaduras como a do 'regime dos coronéis'. Assolados por crises seculares, os gregos sofreram desaires trágicos. Assistimos ainda hoje a sequelas desse passado, como a questão de Chipre.
O verso de T. S. Eliot - "Abril é o mais cruel dos meses" - adapta-se com perfeição a este caso. para os gregos, abril é o mês em que recordam duas datas do seu calendário -a Páscoa ortodoxa e o estabelecimento do 'regime dos coronéis'. O poeta Odysseas Elytis, prémio Nobel de 1979, foi testemunha de muitos acontecimentos históricos do seu país, reflectindo sobre tais factos, em especial, no longo poema Louvada Seja (Áxion Esti).
Oriundo da ilha de Creta, onde nasceu em 1911, Elytis estreou-se na revista Néa Grámmata, publicada em 1935, ano em que o rei Jorge II voltou a assumir o trono após um exílio de vários anos. A situação política começava a complicar-se. Chefes de governo haviam falecido e fora criado o partico comunista grego. Em 1936, o general Metaksás chefia um golpe de estado, proclama a lei marcial, proíbe qualquer oposição e impõe uma das primieras ditaduras da Grécia contemporânea. O governo ficou conhecido pela violência, decretou a censura e retirou a liberdade de expressão, alinhando com os regimes nazis e fascistas. Um exemplo da atitude característica de Metaksás foi a decisão de apreender e queimar o livro do poeta Giannis Ritsos - Epitáfio - diante da porta de Adriano, em Atenas.
Elytis entrou para o exército, em 1937, mas não deixou de escrever, e traduziu autores como Piere Jean Jouve e Lautréamont, em 1939, na véspera da Segunda Guerra mundial. As tropas italianas vindas da Albânia invadem a Grécia. O conflito deflagrou devido à recusa do general Metáksás em aceitar o ultimato de Mussolini para que permitisse a passagem do exército italiano pelo território grego. A 13 de dezembro, Elytis avança para a frente de combate como subtenente da 4ª companhia do 2º batalhão do regimento de infantaria. A experiência na frente albanesa resultará no livro Canto Heróico e Fúnebre pelo Subtenente morto na Albânia.
Em 1941, o general morre vítima de leucemia, tendo início um período crítico para Grécia. os alemães invadem o país, o rei Jorge II foge para Creta, e depois para Londres. Milhares de gregos morrem de fome. Criaram-se então diversos movimentos de resistência - FNL ( Frente Nacional de Libertação), ENPL ( Exército Nacional Popular de Libertação), ENDG (Exército Nacional Democrático Grego - mas resolveram colaborar em conjunto contra o invasor, sob uma condição, após a expulsão dos alemães far-se-ia um referendo para formar um novo governo e reconstruir o país.
Quando a perspectiva de libertação era iminente, começou o digladiar entre os movimentos para ver quem controlava o poder. Forma-se então uma coligação comandada por Papandreou que solicita ao FNL que abandone as armas. É o bastante para desencadear a guerra civil por todo o país.
Em 1944 entram em cena os ingleses, procurando negociar o fim dos conflitos entre os movimentos. A solução é desastrosa, desentendem-se com os gregos, os partidos lutam entre si e as manifestações alastram-se pelas ruas contra a presença inglesa. É o caos absoluto. Neste mesmo ano, o rei exilado nomeia regente o arcebispo Damáskinos. A trégua é instituída, em 1945, com resoluções que propunham reformas políticas, amnistia, e um referendo. Em maio, os alemães saem de um país em ruínas.
Na Conferência de Paz, em Paris (1946), a Grécia recebeu da Itália as ilhas do Dodecaneso e uma indemnização da Bulgária. Mas o clima político mantém-se instável. Tsaldaris assume o poder em maio e focos de conflito recomeçam em várias partes do país. O rei Jorge II chega a Atenas em setembro. Dois anos depois a guerra agrava-se com a tentativa de formação de um governo nas montanhas a norte da Grécia. É decretada a lei marcial, em 1948.
Elytis viaja para a Suíça e França onde trava amizade com Pierre Reverdy, André Breton, Eluard, René Char. Faz um périplo por países como Espanha, Inglaterra, Itália, regressando à Grécia, em 1951, já sob o governo do general Papago. Segundo muitos críticos, é a época em que inicia a escrita de Louvada Seja.
Konstantino Karamanlís sucede a Papago e fica no poder até 1963. Entre as decisões que tomou, alterou o sistema eleitoral e foi responsável por dossiês complexos como a "questão de Chipre'.
Na década de 60, Elytis desempenhou cargos de direção - no Teatro de Arte e no Ballet Grego. A Grécia vive alguma acalmia, até que o governo de Karanmalís é acusado de corrupção. Enquanto a poesia grega era aclamada, em 1963, com o primeiro Nobel de Literatura concedido a Giorgos Seféris, Karamanlís demitia-se de suas funções. Em 1964, o parlamento é dissolvido e o destino da Grécia ficou à mercê de Papandreou. O músico Míkis Theodorákis apresentou nesta altura a sua versão para orquestra, coro e solista, baseada no poema Louvada Seja que se tornará referência nacional.
Predestinada a enfrentar instabilidades sucessivas, a Grécia vê-se mais uma vez envolvida em escândalos. Papandreou demitiu-se ao mesmo tempo que manifestações antimonárquicas se multiplicavam pelo país. Elytis, por seu lado, é traduzido noutros países e a sua obra ganha notoriedade mundial enquanto entra definitivamente na senda do equilíbrio estilístico e da maturidade intelectual e poética.
A 21 de abril de 1967, o general Patakos lidera outro golpe - é a imposição do 'regime dos coronéis' . Papadopoulos dirige a junta militar, apresenta um projecto para uma nova constituição e a partir daí tem uma conduta autoritária, perseguindo todos os que se opunham às suas ordens. Vemos um testemunho destes factos no filme Z de Costa Gavras.
Em 1970, os militares afrouxam um pouco, devolvendo alguns direitos civis, e resolvem abolir a monarquia, em 1973. Estala outro golpe militar, que expulsa desta vez o arcebispo Makários da presidência de Chipre. A invasão turca da ilha faz tremer os coronéis.
O outono de 1973 colou-se para sempre à memória dos gregos. Com o assassinato do deputado Gregoris Lambakis organizaram-se inúmeros protestos pelo país. Em novembro, estudantes da Escola Politécnica de Atenas foram violentamente reprimidos, dando origem a mais de uma dezena de mortos e centenas de feridos. Era o começo da queda do regime dos coronéis, cujo fim se deu em julho de 1974.
Cinco anos depois, em outubro de 1979, a Academia sueca galardoou Odysseas Elytis, que arrebatava assim o segundo Nobel para Grécia. O comunicado divulgado distinguia o poeta que soube "combinar a tradição com uma perspectiva moderna da luta do homem pela liberdade e pela criação".
Durante toda a ditadura, poemas de Áxion Esti eram cantados pelos gregos, como sinal de protesto e resistência.
O poeta morreu em Atenas, a 18 de março de 1996.
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Ao longo do século XX, a literatura grega gerou titãs como Konstantino Kaváfis, Nikos Kazantzákis e Giorgos Seféris. Inserido na geração de 30, que reuniu autores como Andreas Embirikos, Giannis Ritsos, Seféris, Nikos Kavadías, Elytis fez a síntese da tradição, realçando um helenismo intensamente estético, munindo-se da herança propagada pelos surrealistas franceses.
A vaga surrealista chega à Grécia com anos de atraso - mais especificamente em 1931 - quando foram publicados artigos na revista Logos que despertaram pouco interesse. Em 1935, Embiríkos pronuncia uma conferência e organiza a primeira exposição surealista na Grécia, que provocam uma profunda impressão no jovem Elytis. Neste ano, aproxima-se dos editores da revista Néa Grámmata e publica vários poemas. O primeiro livro, Orientações, aparece em 1940, seguido de O Primeiro Sol, em 1943.
Louvada Seja é editado em 1959, após um longo silêncio que serviu ao poeta para amadurecer e reflectir, enquanto trocava experiências com outros autores e traduzia obras de Jean Jouve, Lorca, Eluard.
Estruturado com rigor, o poema está dividido em três partes - "Génesis", A Paixão" e "Glória". Elytis parece ordenar uma catarse extraordinária após anos de guerra e conflitos. É a impotência do poeta perante a morte e o terror que o faz transcender a realidade através da linguagem.
O próprio título nos diz muito acerca do poema, captando elementos da tradição ortodoxa grega que se cantam na noite de Sexta-feira Santa, a par dos hinos eclesiásticos. A primeira parte - "Génesis" - ampara-se na ressonância do sentido da criação do mundo, do conhecimento e da luta entre o poeta e o verbo:
"Debruçado sobre os papéis e os livros sem fundo
com um fino cordel descendo
noites e noites
procurei o branco até à tensão extrema
do negro A esperança até às lágrimas
a alegria até aos confins do desespero"2
Na segunda parte, o poeta metaforiza o calvário de Cristo, intercalando-o com o sofrimento do povo grego entrincheirado entre a ocupação alemã, a guerra civil e a guerra com a Albânia. Elytis consegue um efeito notável ao usar diversas formas poéticas inspiradas tanto em canções bizantinas e de cunho popular como nos salmos de Davi:
"Vieram
vestidos de 'amigos'
incontáveis vezes os meus inimigos,
pisando o chão antiquíssimo.
E o chão nunca se deu com os seus calcanhares.
Trouxeram
o Sábio, o Colonizador e o Geómetra,
livros de letras e números,
toda a submissão e toda a potência,
sujeitando a luz antiquíssima"3
O poeta, imbuído de consciência estilística, faz convergir toda uma bateria de referências;
"Língua deram-me grega,
a casa pobre nas praias de Homero.
(...)
verbos vergastados pelo vento,
verdes correntes através do azul,
quando vi acender-se nas minhas entranhas,
esponjas, medusas,
com as primeiras palavras das Sereias".4
Caiada por uma luz solar vertiginosa, atravessada por uma imagética mediterrânica, detentora de uma metafísica expressiva, a poesia de Odysseas Elytis está primorosamente apresentada, em Portugal, numa tradução irrepreensível assinada por Manuel Resende.
1 Louvada Seja, trad. Manuel Resende, Lx., Assírio & Alvim, 2004; publicado no jornal Expresso.
2 Op. cit., pg. 20
3 idem, p. 51
4 idem, p. 30

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

FRANCESES


A RESISTÊNCIA POÉTICA DE RENÉ CHAR1

Ele não foi um homem público, nem teve a militância do seu amigo Albert Camus, mas comprometeu-se com várias causas, demonstrando uma atitude moral inquebrantável. Combateu os nazis durante A segunda Guerra Mundial - e isso não impediu que nos anos 60 se tornasse amigo de Martin Heidegger; depois converteu-se num activista antinuclear, apoiando os movimentos contra os projetos para a região onde nascera - L'Isle-sur-Sorgue -, e assinou manifestos contra a geurra na Argélia. Esta conduta nunca interferiu na sua poesia, mantendo a fidelidade absoluta à palavra poética. Foi assim o poeta René Char, que nasceu em 1907 e faleceu a 17 de fevereiro de 1988.
Descoberto por Paul Eluard, em 1929, o jovem poeta chega a Paris e estabelece amizade com os surrealistas, publicando, em 1930, Ralentir Travaux2, em parceria com Eluard e André Breton. Depois distancia-se do grupo e cumpre uma independência que se consolidou nos livros publicados posteriormente. Furor e Mistério é um dos momentos centrais da sua obra. Escrito em 1938/47 inclui, entre outros, Folhas de Hipno, obra considerada por muitos críticos como um dos testemunhos seminais da barbárie deflagrada pela guerra - Paul Celan traduziu-a integralmente para o alemão -, quando Char comandou um grupo de resistentes sob o "nom de guerre" de capitão Alexandre.
Hipno - o Sonho - percorre o mundo, anestesiando o sono dos homens; era irmão de Tânato - a Morte - e filho da Noite e de Hérebo - a escuridão, o inferno. Char retoma essa figura para concitar o diálogo entre a realidade devastada pela guerra e a visão interior. O discurso é orientado pela presença aforismática, o seu timbre escava um sentido para além das possibilidades; as imagens apresentam-se com percepções inovadoras.
A subjectividade metalinguística e a diversidade imagética canalizam os seus temas usuais: a solidão, o movimento das coisas, a morte e a própria linguagem no seu estado de aferição da realidade. Char aspira ao adensamento dos sentidos para irradiar na linguagem uma espécie de reflexão expansiva, de irrupção súbita da sensorialidade.
São muitos os referenciais poéticos captados pelo autor, mas - e aqui concordo com Jean-Pierre Richard - o que tende a intervir na sua obra com frequência é tanto a menção a Georges de La Tour como a poesia de Hölderlin e Rimbaud e a filosofia dos pré-socráticos. O poeta molda uma poética em diálogo com pintores - Giacometti, Matisse, Picasso, Vieira da Silva -, e músicos como Pierre Boulez. Tais pressupostos definiram as fronteiras desta poesia, cujo limite fixa o sentido num arcabouço difícil de penetrar.

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Dizia Albert Camus, no texto escrito para a edição alemã da poesia de Char, "Je tiens René Char pour notre grand poète vivant et Fureur et Mystère pour ce que la poésie française vous a donné de plus surprenant depuis Iluminations et Alcools". Não há dúvida de que Char representa a síntese tumultuosa daqueles três autores que constituem uma espécie de "triângulo das Bermudas" da poesia francesa, ou seja, Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé.
A sua poesia circula num terreno dividido por múltiplos sentidos, acepções e interrogações. Para René Char, a poesia devia influir sob a pressão do dizer, com a linguagem a "pulverizar" o real, reintroduzindo-o através de uma escala medida pelo hermetismo libertador e pela turbulência imagética. O poeta adensa a expressão à medida que a sua ataraxia violenta revela a "serenidade crispada". Homem da realidade plena, poeta do "presente perpétuo", Char estava atento aos acontecimentos do mundo. A comunicação poética mostra-se tangível à incidência da reordenação do real, o mundo emerge desta poesia envolto em enigma:

"Mas que roda no coração da criança expectante girava mais depressa, com mais
força
que a do moinho no seu incêndio branco?3

Contra os atributos da linguagem artificiosa, a poesia de Char assume o pendor intransitivo para regular uma topologia do poema. A sua obra converge para a inquirição intermitente;

"Nascido do apelo do devir e da angústia da retenção, o poema, elevando-se
do seu poço
de lama e estrelas, testemunhará, quase em silêncio, que nada havia nele
que
de verdade
não existisse noutro lado, nesse mundo rebelde e solitário das contradições"4

Do verbo ao astro, do desenho rupestre à visão fascinante de um pedaço de sílex, a poética de Char sobrevive entre a transparência e a densidade:

"Qual canto do torcaz quando a tempestade espreita - o ar
polvilha-se de chuva, de sol fantasmagórico -, eu acordo
lavado, derreto ao elevar-me; vindimo o céu noviço"5

Após a cisão com os surrealistas, Char amadureceu a voz, as marcas iniciais fragmentaram-se e apossou-se de outra forma de apreender a palavra. A inserção aforismática ganha espaço e o vocabulário torna-se permeável à ilustração resignada do horror. A poesia deste "transparente irredutível" desloca-se em direção ao intemporal; a palavra celebra o indizível, as imagens intransmissíveis.
René Char foi fiel aos seus princípios. A solidão, a humildade e a entrega total à obra não se revestiram de simples ornamentos de conduta. Viveu na pequena aldeia provençal que amou até o fim. Ainda teve tempo de casar com Marie-Claude Char e deixou um volume póstumo, Èloge d'une Soupçonnée, de onde ecoam palavras premonitórias:

"Soupçonnons que la poésie soit une situation entre les images de la vie,
/l'approche de la douleur
l'élection exhortée, et le baisement même. Elle ne se séparerait de son vrai
/coeur que si le plein
découvrait sa fatalité, le combat conmencerait entre le vide et la communion.
Dans ce monde
transposé, il nous resterait à faire le court Èloge d'une soupçonnée".6

O ataque cardíaco, que o fulminou em fevereiro de 1988, calou uma das vozes imprescindíveis da tradição poética moderna nascida nos alvores do século XX.

1 Furor e mistério, trad. Margarida Vale de Gato, Lx., relógio d'Água, 2000, publicado no jornal Expresso.
2 Ralentir Travaux, Paris, José Corti, 1991.
3 Este fanático das nuvens, trad. Yvette K. Centeno, Lx., Cotovia, 1995.
4 Op. Cit., p. 5
5 idem, p. 17
6 Èloge d'une Soupçonnée, Paris, Gallimard, 1988


sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011



COM A MORTE NOS OLHOS1


Na sobrecapa do volume agora publicado, a editora resolveu inserir a reprodução do manuscrito de "Os mares do Sul". Pavese escreveu o poema aos 22 anos, foi com este texto que inaugurou outra via para a poesia italiana, dominada naquela altura pelo hermetismo. A primeira edição de Lavorare Stanca veio à luz em 1936. Muitos dos poemas foram escritos durante a prisão política de Pavese, na Calábria. A censura fascista eliminara vários poemas, segundo os responsáveis afirmaram, devido ao excesso de obscenidade.
Na verdade o código poético do poeta italiano era atravessado por um descritivismo lírico. os seres à margem da sociedade - mendigos, prostitutas e trabalhadores - são guindados do limbo onde se encontram, e evocados através da percepção melancólica:

"Muitas vezes regressa no lento despertar
aquele sabor decomposto de flores distantes
e de estábulo e de sol. Não há homem que saiba
a subtil carícia daquela acre recordação.
Não há homem que veja, além do corpo estendido,
aquela infância passada numa ânsia inocente."2

A poesia empreende um regresso à realidade consciente da instrumentalização coloquial. É necessário ter em conta que a textura narrativa do poema suporta o discurso fincado no quotidiano:

"Talvez antes da aurora um sopro mais frio
extinga a lua e os vapores e apareça alguém.
Uma frágil claridade mostraria a garganta
sobressaltada e as mãos febris a fecharem-se
em vão sobre os alimentos"3

Pavese cria uma ambiência para os seus poemas, mantém uma tensão envolvente, um distanciamento, a frustração amorosa e uma obscura interpretação do institnto sexual:

"Atónito com o mundo, veio-me uma idade
em que desferia murros no ar e chorava sozinho.
Ouvir os discursos dos homens e das mulheres
sem saber que responder não é grande alegria.
Mas também essa idade passou: já não estou só
e se não sei responder, passo bem sem isso"4

O poeta trabalhou na editora Einaudi, onde fez várias traduções de autores americanos, reconhecidas como obras-primas. Após o seu suicídio, a figura escolhida para o substituir foi Italo Calvino. No volume Poesie Edite e Inedite, de 1962, encontramos 29 textos recuperados por Calvino entre os papéis deixados pelo poeta. Os textos demarcam uma nova etapa. Foram escritos nom período que se seguiu à prisão, quando a plasticidade que havia mantido na sua poesia entra em crise - o testemunho surge no diário Ofício de Viver5.
A "poesia-relato" de Pavese intenta a busca de uma expressividade coloquial que o distingue entre os contemporâneos. Pavese se distancia do hermetismo mediterrânico de Eugenio Montale, da concisão de Giuseppe Ungaretti e do lirismo de Umberto Saba, ou da poética de protesto de Salvatore Quasimodo. O confessionalismo sentido desta poesia é ritmado pelos versos livres, usualmente de 13 sílabas.
Cesare Pavese é um autor conhecido do público português, os seus romances obtiveram muitas versões nos anos 60. Esta é a segunda tradução da sua poesia a sair em Portugal6.
A versão competente a que agora temos acesso dá-nos a conhecer a sua obra poética, e preenche um pouco a lacuna que há sobre a poesia italiana do século XX - e Pavese é sem dúvida um dos picos.
A 27 de agosto de 1950, num hotel de Turim, ele encarou finalmente o olhar fatídico da morte:

"Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como largar um vício,
como ver ressurgir
no espelho um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Desceremos o remoinho mudos."7

1 Trabalhar Cansa, tradução e introdução de Carlos Leite, Livros Cotovia, 1997; publicado no jornal Expresso.
2 Op. Cit., 103
3 idem, p. 195
4 ibidem, p. 33
5 Ofício de Viver, tradução de Margarida Periquito, Lx, Relógio D'Água, 2004.
6 O Vício Absurdo, trad. Rui Caeiro, Lx, & Etc, 1990.
7 op. , cit., 351.



sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011




(Um parêntese entre os italianos, só para lembrar o centenário da Elizabeth Bishop)
ENCONTRO DE IRMÃS1
A poesia norte-americana do século XX gerou duas autoras que foram capazes de transformar a linguagem e imprimir-lhe um tom genuíno. Estas duas senhoras praticaram um gênero inovador, preocupando-se sobretudo em ladear um nível de experimentação singular, sem deixar margens para deficiências. Operaram em campos distintos tanto geográfica como conceptualmente, mas tiveram quase as mesmas preocupações e, além de tudo, foram amigas e discutiram durante anos os escritos entre si. Trata-se de Marianne Moore e Elizabeth Bishop.
Marianne, que nascera em 1887, publicou o primeiro livro em 1921. Antes disso, capturou a admiração de Ezra Pound que publicou poemas seus na Little Rewiew em 1917. O verso de Moore apresenta uma racionalidade instável, a par do seu estilo fragmentário. Os versos silábicos regem as rimas, são enxertados com uma cadeia referencial, misturando citações de variadas origens como notícias de jornais, pedaços de conversas, ou reminiscências de textos lidos; é uma panóplia lexical estruturada em torno de uma voz renovadora.
Propunha Wallace Stevens, num texto de The Necessary Angel2 - "About One of Marianne Moore's Poems" -, que os poemas dela "ilustravam o aperfeiçoamento de uma realidade individual". De facto, o mundo interior de Marianne explica muito do que escreveu. Solteirona convicta, adorava os bichos, e era uma leitora omnívora de jornais e apaixonada por baseball e dedicou vários poemas ao tema. O seu escritor de eleição era La Fontaine, de quem traduziu As Fábulas. Apesar destas predileções nada poéticas, Moore ficou conhecida como uma "poeta para poetas", tudo porque muitos críticos viam a sua poesia como excessivamente intelectualizada. Certo é que foi admirada pela nata da literatura, exemplo disso foi T. S. Eliot que, ao prefaciar os seus Collected's Poems3 não lhe poupou os elogios. Ao falecer em 1972, Ezra Pound mandou rezar uma missa em sua memória, onde leu os versos de "What Are years".
Como referi acima, estas autoras, formalmente distintas entre si, encontraram-se na amizade que durou décadas. Marianne Moore costumava costumava dizer que Elizabeth Bishop lhe fazia lembrar Pisanello porque a sua poesia era a "espectacularidade do não-espectacular". Bishop foi apresentada a Marianne por uma amiga bibliotecária do Vasar College onde fez a sua formação. A amizade prolongou-se, de forma epistolar, quando Bishop foi viver para o Brasil.
Nascida em Worcester, em 8 de fevereiro de 1911, estudou na Nova Escócia, Canadá, onde presenciou a loucura gradual da mãe. Publicou o primeiro livro, North & South4, em 1946. A obra foi apoiada por Moore e Edmund Wilson, e a crítica passou pelo crivo rigoroso de Randall Jarrel. Desde essa altura, a sobriedade estilística de Bishop, fortalecida por uma abstractização recorrente e uma intensidade perceptiva, adquiriu força e expressão, arrebatando inúmeros prémios. Octavio Paz dizia que "ouvi-la não era como se estivesse a ouvir uma lição, mas sim um prazer verbal e mental, tão grande quanto uma experiência espiritual". Robert Lowell foi outro a reconhecer-lhe o talento.
A relação com o Brasil começou em 1951 com uma viagem de barco. Ao chegar ao país, ficou hospedada na casa duma amiga norte-americana que vivia com Lotta Macedo Soares, rica herdeira de uma família do Rio de Janeiro. A paixão por Lotta foi correspondida e Bishop fixa-se no Brasil até meados dos anos 70, vivendo ali períodos políticos de instabilidade e opressão.
Para Bishop as viagens são tão essenciais como para Moore os animais. Foi com o livro Questions of Travel, de 1965, que a autora homenageou o Brasil em poemas que descrevem a paisagem, as gentes e a vida. Dois anos depois, a sua companheira suicida-se. Bishop permanece algum tempo no Brasil, mas regressa definitivamente aos Estados Unidos. Depois de muita insistência de Lowell, aceita o cargo de consultora de poesia da Biblioteca do Congresso, mas parece que viveu momentos difíceis, se tivermos em conta as cartas que escreveu nesta época5.
Ao receber o prémio Neustadt de 1976, recordou a experiência brasileira e a paixão por Lotta Macedo. É preciso não esquecer que se deve a Bishop a edição de uma antologia da poesia brasileira publicada pela Wesleyan University, em que convenceu nomes de peso como James Merril e W. S. Merwin a participar no projecto. Ela mesma traduziu poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Joaquim Cardozo e Vinicius de Moraes.
Faleceu em 1979.
1 Poemas de Marianne Moore e Elizabeth Bishop, trad. Maria Loudes Guimarães, Porto, Campo das Letras, 1999; publicado no jornal Expresso.
2 The Necessary Angel, New York, Random, 1951.
3 Collected Poems, Macmillan, 1951.
4 Complete Poems (1927-19179), Material, 1984.
5 Uma arte - as cartas de Elizabeth Bishop, São Paulo, Companhia das Letras, 1995.




segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

ITALIANOS


O EQUILÍBRIO DO OLHAR1

Valerio Magrelli nasceu em Roma, em1957. Formou-se em Filosofia e é professor de Literatura Francesa na Universidade de Cassino. Traduziu Paul Valéry e Verlaine. Faz parte dos "novíssimos" poetas de Itália. Com uma obra relativamente pequena, mas respeitada por muitos críticos. Estreou-se com Ora Serrata Retinae2, seguindo-se Nature e Venature3, Esercizi di Tiptologia4. Entre as obras publicadas até o momento, foi com o livro de estreia que conseguiu obter sucesso junto do público e da crítica, não só pelas edições esgotadas mas porque é neste volume que o poeta revela a sua palavra inaugural.
A ideia de visão que conceptualiza - Ora Serrata etinae - surge irmanada pela graduação estereoscópica diante do mundo e dos objetos. Magrelli parece graduar o movimento de focagem e desfocagem do olhar sobre as coisas:

"Gli occhi si consumano come matite
si consumano come matite
e la será disegnano sul cervello
figure appena sgrossate e confuse.
Le immagini oscilano e il tratto si fa incerto,
Gli oggetti si nascondono:
È come se parlassero per enigmi continui
Ed ogni sguardo obbligasse
la mente a tradurre"5

Sujeito e objeto armam a estrutura do discurso circular. Muito mais do que imagens, o poeta quer extrair o "ADN" da poesia através da alegorização, da pesquisa rigorosa, daí a consequente reflexão metapopética:

"Se il cieli à la mano
il mare la pagina,
la pena fiamma e batessimo
percorso dalla folgore, sentiero
che si perde nell'acqua"6

A sua poesia galga uma dimensão inusitada, como afirmou o autor:
" O problema para mim é procurar um léxico fora da literatura, recuperar um léxico que funcione. Penso na linguagem técnica da navegação, nos termos da álgebra, no rigor dos enunciados filosóficos e teológicos, na cadência de certa prosa científica".
A "mecânica uniforme" apresenta-se formalmente definida, o racionalismo com que pactua é retirado daquilo que o poeta acredita ser essencial: Berkeley e Montaigne, Valéry e o trabalho artesanal, a álgebra e os termos técnicos7, a exemplo do Montale que usou um vocabulário similar. Tais elementos funcionam como vias para celebrar uma maneira de comunicar e enfrentar os desafios da linguagem poética. O poeta atinge os objetivos que pretende ao tematizar o seu próprio ofício motivado pelo equilíbrio do olhar:

"Preparar la parola con cura, perché arrivi alla sua sponda
scivolando sommesa come una barca,
mentre la scia del pensiero
ne disegna la curva"8

O emprego dos termos científicos referentes à anatomia do olho que subdividem Ora Serrata Retinae são aplicados noutras circunstâncias, o mecanismo conceptual é rebatizado. No livro Esercizi di Tiptologia, Magrelli introduz o jogo linguístico entre o nome de um carro da ex-RDA que em alemão significa "satélite" e os fatos históricos que ocorreram com a derrocada do muro que dividia a Alemanha:

"Satélites de um sistema solar que se desfaz,
de um núcleo que decai, liberta partículas
e perde as suas pérolas dos fios orbitais, bagos
de um granizo
e brilham sobre os asfaltos ocidentais,
TRABANT rosa, beige, verde
(...)
TRABS
de uma classe fóssil e estilizada,
caixinhas de lata onde aperta
uma inquieta, doce burguesia comunista, achados
minerais, carro do Mickey
que fugis do vosso flautista assassino,
bem vindos a Hamelin, RFA!"9

Como tradutor, Magrelli verteu para a sua língua a obra de Paul Valéry, o investigador obsessivo do fenômeno literário. Não seria um erro afirmar que a obra em progresso deste italiano reproduz com apurada eficácia, o que o autor de Monsieur Teste dizia ser a "festa do intelecto", ou seja, a poesia.
1 Texto que anunciava a vinda de Valerio Magrelli para o encontro "Poesia em Lisboa", que decorreu entre 21 e 25 de amio de 1996, na Casa Fernando Pessoa; publicado no jornal Expresso.
2 Ora Serrata Retinae, Roma, Feltrinelli, 1980.
3 Nature e Venature, MOndadori, 1987.
4 Esercizi de Tiptologia, Mondadori, 1992.
5 "os olhos gastam-se como lápis/ e pela noite desenham no cérebro/ figuras apenas esboçadas e confusas./ As imagens estremecem e os traços tornam-se incertos,/ os objetos desaparecem"
6 "Se o céu é a mão/ o mar a página,/ a caneta chama e baptismo,/ traçado do relâmpago, vereda/ que se perde na água" (in A espinha do P, trad. Maria Carlos Loureiro).
7 Ver a este propósito introdução da versão castelhana de Ora Serrata Retinae, trad. Carmen Romero, Madrid, 1989.
8 "Preparar a palavra com cuidado para atingir a margem/deslizando como um barco secreto/ enquanto desenha uma elipse na estela do pensamento".
9 A Espinha do P, Quetzal, 1993.