sexta-feira, 28 de janeiro de 2011


O SENHOR DOS LABIRINTOS1
Em 1 de outubro de 1898 casavam-se na igreja de Las Victorias, em Buenos Aires,Jorge Guillermo Borges de Acevedo Suárez, o noivo er aum advogado recém-formado, a noiva ujma jovem de vinte e dois anos. Ambos pertenciam a famílias tradicionais , e um ano depois, a 24 de agosto de 1899, nascia Jorge Luís Borges, o escritor que desenhou uma parte do mapa da modernidade do século XX, o criador de todo um universo insólito e mundos regionais com ressonâncias cosmogónicas a invadir as ruas de Buenos Aires.
Pelo lado paterno, Borges herdou a costela da avó Fanny Haslam de Borges que se orgulhava de não ter "uma só gota de sangue escocês, irlandês ou galês". Desde cedo o neto iria demonstrar a sua versatilidade com o idioma de Shakespeare ao traduzir O Príncipe Feliz de Oscar Wilde, com apenas nove anos, e publicado no El País de Montevideu. O mesmo domínio tinha a mãe que aprendeu inglês com a sogra tendo traduzido obras de D. H. Lawrence, Nathaniel Hawthorne, William Saroyan e Melville, chegando a colaborar com Borges nas versões que fez de Virginia Woolf e William Faulkner. Será esta senhora que, a partir dos anos 60, irá acompanhar o filho, já totalmente cego, nas inúmeras viagens que fez pelo mundo.
O pai foi relevante na educação de Borges. Era um homem rectado e compreensivo, cultivava um sarcasmo contido, admirava John Keats e Swinburne, e lia muita filosofia, sobretudo David Hume e Berkeley. Quando Borges completou dez anos, o pai decidiu que era altura de ler passagens de Platão ao filho.
Outro aspecto que o fascinara aos doze anos, a paixão pelos tigres, ficará registado para sempre nos desenhos que fez destes animais que seriam tema recorrente da sua obra. Mas o jovem é fervoroso leitor de Kipling, Mark Twain, H. G. Wells, Charles Dickens e Robert Louis Stevenson. Foi este ambiente culto e elegante que prevaleceu na infância do autor, determinando nas décadas seguintes a essência do seu universo mítico. Em contraponto a estes factos, Borges descobre o mundo "gauchesco" com dez anos, quando a família passa uma temporada na pampa argentina.
Em 1914 o pai resolve encetar uma viagem à Europa para tratar da sua catarata com um médico de Genebra. Mas com o começo da Primeira Guerra Mundial, a família vê-se impedida de regressar. Os Borges resolvem fixar-se na cidade onde os filhos - Norah e Jorge - aperfeiçoaram o francês. Data desta época a descoberta da literatura francesa e o estudo do alemão. Ao todo, a família viveu quatro anos em solo europeu, que ajudaram o escritor a ampliar os seus conhecimentos.
O primeiro contacto de Borges com o Ultraísmo dá-se em 1919, quando a família visita a Espanha, e Borges aproxima-se da tertúlia do Café Colonial, em Sevilha, mas só conhecerá o mentor do movimento, Rafael Cansinos-Asséns, em Madrid. Pouco antes do regresso definitivo, a família viaja até Portugal, onde Borges descobre Camões e visita o Mosteiro do Jerónimos, confundindo o túmulo de Vasco da Gama com o do autor de Os Lusíadas - a homenagem propriamente dita aparecerá num poema de O Fazedor, de 1960.
Quando regressa a Buenos Aires tem 20 anos. A cidade onde nasceu já não era a mesma. Agora o jovem estava apto a assumir o seu destino de escritor, como afirmou na sua Autobiografia: "Aquilo foi algo mais do que um regresso; foi uma redescoberta. Fui capaz de perceber Buenos Aires com avidez e veemência porque havia estado distante durante muito tempo. Se nunca tivesse saído daqui, interrogo-me se teria sido possível vê-la com a emoção e o deslumbramento que agora em mim produzia. A cidade, não toda cidade em si, mas alguns poucos lugares que emocionalmente significavam algo, inspiraram os poemas do meu livro Fervor de Buenos Aires"2.
Em 1922 lança a revista Prisma que foi a base da divulgação dos ideais "ultraístas" na Argentina. Em seguida publica Proa, apaixona-se por Concepción Guerrero e edita o seu primeiro livro. A partir daqui, a mitologia borgesiana vai ampliar-se com o aparecimento de Caderno de san Martín3 de 1929, Evaristo Carriego 4, de 1930, ou Discussão, de 1932.
Borges era uma referência para os grupos que surgiam. Os artigos que publicava nos periódicos mapeavam os mais diversos autores, comentando obras como a de Wilde, a poesia barroca espanhola ou James Joyce, na altura, um ilustre desconhecido para a maioria dos leitores. O olhar interrogativo de Borges dirige-se à essência da alma argentina, apesar de ter sido um crítico feroz de outras realidades do seu país.
Isto parece contradizer o escritor que no final dos anos 20 deixa encantar-se com os tons do tango e da milonga - foi um exímio dançarino que passava as noites a bailar com Victoria Ocampo, musa e figura principal que encabeçou a criação da célebre revista Sur. O escritor deambulava pelos subúrbios de Buenos Aires para ver a realidade que transfere para a sua obra numa transfusão peculiar. Em 1927 faz a primeira das oito operações à catarata, doença que herdou do pai.
Ao reunir os ensaios incluídos em Discussão, Borges expunha a sua capacidade de discorrer sobre incontáveis assuntos como a poesia gauchesca, a cabala, os clássicos ou o cinema, um hábito diário que foi interrompido pelos problemas da visão - admirava Josef Von Sternberg, Chaplin, Buster Keaton e Eisenstein. Era um opositor das dobragens e implacável contra as dobragens de Hollywood.
1938 é o ano da viragem radical da sua obra, ams também trágica a nível pessoal. Logo no início do ano, o pai falece. Em seguida é a vez do suicídio de Leopoldo Lugones, por quem nutria uma devoção de discípulo. Já no fim deste ano, Borges tem o acidente que o deixará à beira da morte, ao machucar-se no vão de uma escada, ficando internado várias semanas. O problema de visão agrava-se e a cegueira é uma fatalidade com a qual conviverá com sabedoria. Alguns meses mais tarde, e após ultrapassar uma crise de loucura, escreve o conto antológico "Pierra Menard, autor do Quixote". É a fase dos contos insuperáveis, publicados em obras como Ficções6 e O Aleph7. Borges dedica-se quase três décadas exclusivamente à prosa, deixando de lado a poesia, à qual retornará em 1960 com O Fazedor8.
Os anos 40 são, sem sombra de dúvida, o período inicial da sua fama. Faz palestras, é traduzido para outras línguas, participa de congressos e mesas redondas, périplo que cumpre acompanhado da sua mãe. Em 1955 é convidado para dirigir a Biblioteca Nacional da Argentina, onde permanece por dezoito anos. Mas a consagração chega com o prémio Formentor, em 1960. Aparecem livros como Elogio da Sombra9, O relatório Brodie10 e O Ouro dos Tigres11, mas a sua curiosidade não diminui, os cursos de literatura anglo-saxónica, a que preside na BNA, conquista os alunos das mais variadas idades. Será uma desats alunas, Maria Kodama, que conhecerá em 1975, quem se tornará sua última companheira.
Borges criou mitologias metafísicas, mundos labirínticos reflectidos numa linguagem cuja elegância lírica é a expressão suprema de uma alquimia literária sem igual. Imagens, metáforas e ritmos fizeram de Borges o ícone do escritor contemporâneo .
Embora não tenha sido bafejado pelo humor dos acdémicos que todos os anos escolhem um autor para o Nobel, Borges tem seu lugar de honra como personagem incontestável da literatura de todos os tempos.
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Apliquemos o rigor da matemática cronológica. A estreia literária de Borges dá-se em 1923 com o livro Fervor de Buenos Aires12, dois anos depois é a vez de Lua Defronte13, e em 1929 Caderno de San Martín14. Contudo, o escritor resolve encerrar a aventura, regressando á poesia com O Fazedor, em 1960, um livro híbrido que agrupa textos em prosa e poemas - é aqui que surge o poema dedicado a Camões. Tudo somado, Borges silenciou a palavra poética por três décadas, pelo meio produziu as obras-primas que se tornaram paradigmas da modernidade.
Este hiato temporal não anulou a voz genésica que o poeta expusera nos primeiros livros. Além disso, os problemas de visão agravam-se após o acidente e fica abalado com o suicídio de um do seus mestres, o poeta Leopoldo Lugones. Borges tinha 39 anos, e continuou a publicar até ao fim da vida.
desde os primeiros livros, o escritor inaugura a absorção do mundo, lançando teias de referências que se ramificam nos breves ensaios, o hermetismo dos contos e os poemas. Tais expressões estão assentadas numa zona dividida entre a lógica anárquica, a erudição visionária e uma astuciosa ironia. A estratégia poética de Borges não se distancia do seu universo ficcional. O escritor propõe-nos realidades imponderáveis que se conjuram num ritmo compacto;
"Porém, a antiga noite é funda como o jarro
de água côncava, aberta a infinitos sinais,
e em canoas, perante as estrelas fatais,
o homem mede o vago tempo com um cigarro"15
A discursividade hierática dos contos é transposta para os poemas seguindo um raciocínio sinuoso que beira o onírico, sem abandonar o tom solene, a percepção elegíaca, a referência evocativa. espalham-se pela sua obra os poemas-homenagens que permitem conhecer uma galeria onde tudo e todos fazem parte de um clã selecto: Joyce, Shakespeare, Espinosa, Swedenborg, Paul Valéry, Virgílio e Homero. E a lista poderia continuar. É o "infinito da literatura" que Maurice Blanchot detectara em Borges, este "homme essentiellement littéraire".
"Ninguém pode escrever um livro. Para
que um livro exista verdadeiramente
Requerem-se a aurora e o poente,
Armas, séculos e o mar que une e separa"16
Borges adaptou vínculos literários universais a uma visão histórica e cultural enraizada num modo particular de entender a literatura. O resultado deste controlo genuíno começou a ser colhido no início dos anos 60. As honrarias multiplicaram-se, e Borges encarnou a vida de viajante infatigável. As suas conferências tinham como alvo os temas preferidos: a cegueira, a cabala, os espelhos e os labirintos.
Sempre pensei que a melhor forma de explicá-lo fora feita, sem querer, numa frase de outro mestre de Borges, Macedonio Fernández: "Escrever é uma forma de não ler, ou de vingar-se por ter lido tanto".

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011


GEOGRAFIA POÉTICA1

No território do Chile há uma região denominada Araucanía, ou "A Fronteira". O povo que habita esta zona é o mapuche, cujas origens remontam aos quíchuas. Nas lutas travadas durante a conquista espanhola, este povo demonstrou uma resistência férrea, de tal forma que o poeta e soldado espanhol, Alonso de Ercilla, lhe celebrou a coragem no longo poema "La Araucana"2, publicado em 1569. Os combates só viriam a acabar no final do século XIX, quando os chilenos conquistaram a soberania. A região onde vivem ainda hoje os mapuches encontra-se entre os ventos antárcticos do Pacífico sul e a inclemência dos Andes.
Ao concluir o Canto Geral, em 1949, Pablo Neruda recuperava factos que as águas do rio da história haviam encoberto, reabilitando não só as tradições do canelo mágico dos mapuches como toda uma galeria de personagens anónimas que teceram a extensa manta de retalhos de que é feita a América Latina.
A geografia poética de Neruda adopta um pendor titânico: dar voz a todo um continente situando o epicentro da sua façanha no resgate estratégico das realidades latino-americanas, contrapondo passado e presente como fio condutor do poema. A fusão de culturas e a comunhão de linguagens são os instrumentos que aceleram a cadência da epopeia, que atinge momentos admiráveis, assim como derrapa no mais explícito panfletarismo ideológico.
Para Neruda , a década de 40 fora criativa. Escreveu Residencia en la Tierra, España en el Corazón, Tercera Residencia e concluiu o Canto Geral. A par do trabalho literário aprofundou a militância política que acabaria por toldar, muitas vezes, a sua obra. Os pontos cardeais da sua poesia apontam para o lirismo inicial e nostálgico de Veinte Poemas de Amor y una canción Desesperada3, depois na invocação elementar da natureza de Residencia en la Tierra, até à arquitectura épica do Canto Geral, completando-se o ciclo com o sedutor apelo político de Tercera Residencia. Eis a súmula da sua poética que, segundo Octavio Paz, é "a bárbarie terrestre, genésica".
A evocação inicial do poema congrega toda a afluência de civilizações que povoaram o continente, comparecendo numa sucessão caraíbas, chibchas, araucanos, incas, zapotecas, entre muitos outros. As alusões ao corpo geográfico da América Latina abarcam todo o poema, em conjunção com as referências geológicas, vegetais, os factos políticos e históricos. Neruda pretende refutar a realidade para reescrevê-la segundo a afirmação de uma mundividência que se cristaliza em certas passagens do texto.
O primeiro momento a confirmar esta projeção destaca-se no segundo canto "Alturas de Macchu Picchu", onde encontramos, às vezes, as plasticidades presentes em livros como Residencia en la Tierra, por exemplo, o primitivismo metarfórico:

"Alguém que me esperava no meio dos violinos
encontrou um mundo semelhante a uma torre
enterrada
que mergulhava a sua espiral no fundo de todas
as folhas da cor do rouco enxofre:
mais ao fundo, no ouro da geologia,
como uma espada envolta em meteoros,
mergulhei a mão turbulenta e doce
no mais íntimo da terra"4

Duas imagens parecem sopesar o andamento do poema - a figura do condor andino e os anónimos mineiros chilenos -, Neruda conduz a sua imagética numa variável cadeia de tons e exercícios estilísticos, o poeta quer reinscrever a assinatura do mundo primitivo:

"Então subi pela escada da terra
por entre o emaranhado atroz das selvas perdidas
até chegar a ti, Macchu Picchu
(...)
Em ti, como duas linhas paralelas,
o berço do relâmpago e do homem
balouçavam num vento de espinhos"5

A investida poética prossegue com maior intensidade no terceiro canto, "Os Conquistadores". Uma passagem a destacar é o poema XXII, em que o poeta homenageia Alonso de Ercilla:

"Pedras de Arauco e desprendidas rosas
fluviais, territórios de raízes,
encontram-se com o homem de Espanha.
Invadem a sua armadura com gigantesco líquen.
A hera original põe mãos azuis
no recém-chegado silêncio do planeta.
Homem, Ercilla sonoro, ouço a pulsação da água
do teu primeiro amanhecer, um frenesi de
pássaros
e um trovão na folhagem"6

As imagens reproduzem-se nas ressonâncias metafóricas. Neste sentido, consegue-se perceber os ecos que assombram o poema, como de César Vallejo:

"Irmãos da água e do piolho, dum planeta carnívoro
vistes enfim, a árvore do mastro inclinada na tempestade?"7

Esta obra é um arquipélago multifacetado, com passagens de extrema beleza vocabular e imagética, porém, pelo meio activa-se uma prosódia calcada pela propaganda ideológica, que rasura o seu poder encantatório. Isto não nos impede de reafirmar que é um poema central da expressão poética hispano-americana do século XX e a importância que auferiu como instrumento de insurreição contra as inerências políticas da América Latina.

1 Canto Geral, trad. Albano Martins, Porto, campo das Letras, 1999, publicado no jornal Expresso.
2 La Araucana, Barcelona, ed. Ramón Sopena, 1981.
3 Ver tradução de José Bento, Antologia, Lx., Relógio d'Água, 1998.
4 Op. cit., 39.
5 idem, p. 45
6 Ibidem, p. 90
7 Ibidem, p. 95

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011


O VERBO INSULAR1
Cada um transporta o seu inferno portátil. O de Virgilio Piñera foi escrever e assumir-se como homossexual em Cuba, o que lhe valeu a perda do emprego, os livros que deixaram de ser publicados , a proibição das peças teatrais que escreveu e a obra vetada pela universidade. Como a glorificação póstuma é uma tendência que continua viva, não causa surpresa que o seu nome - vinte anos após a sua morte - volte a ser recuperado, sobretudo em Espanha, onde a sua obra tem sido alvo de reedições. Contudo, o calvário que viveu não pode ser esquecido, e a importância daquilo que deixou merece a devida atenção.
Nos primórdios da revolução cubana, um facto marcou o panorama cultural da ilha. Em 1962, durante o Congresso de Escritores e Artistas realizado na Biblioteca Nacional de Cuba, Fidel Castro pronunciou o discurso "Palabras a los intelectuales". Uma frase paradigmática anunciava o período que estava para vir: "Dentro de la revolución, nada. Contra la revolución nada, porque la revolución tiene también sus derechos y el primer derecho de la revolución es el derecho a existir y frente al derecho de la revolución de ser e existir, nadie". O poeta, contista e dramaturgo Virgilio Piñera estava presente no congresso e a única afirmação que fez foi: "Yo quiero decir que tengo mucho miedo. No sé por qué tengo ese miedo pero es eso todo lo que tengo que decir". O efeito provocado pelas palavras de Fidel consumou-se pouco tempo depois. A política de perseguição entra em ação, em 1965, e um grande número de artistas e escritores são presos, acusados de homossexulaidade e enviados para os campos da UMAP - Unidades Militares de Ajuda à Produção -, onde são submetidos a trabalhos forçados e doutrinação política.
Muito do que se passou ficou registado no livro Antes que anoiteça2, de Reinaldo Arenas, onde evoca a figura de Piñera. O período ficou conhecido como o "quinquenio gris" e agravou-se durante a década de 70. Virgilio Piñera designou-o como o da sua "morte civil".
O escritor nasceu em Cárdenas, em 1912, e faleceu em 1979 na ilha natal, completamente ostracizado pelo regime castrista, mas sem abandonar a escrita. Entre 1948/56 estabeleceu-se na Argentina, convivendo com Jorge Luís Borges e Witold Gombrowicz, de quem traduziu Ferdyduke. Fez parte do grupo revelado na revista Orígenes, dirigida por Lezama Lima e José Rodriguez Feo, onde colaboraram autores como Octávio Paz, Jorge Guillén, Luís Cernuda, Henri Michaux, Pierre-Jean Jouve, Wilfredo Lam e Rufino Tamayo. Tal grupo foi o verdadeiro impulsionador da modernidade literária não só cubana, mas hispano-americana.
Virgilio Piñera começou a publicar nos anos 40, recebendo críticas negativas, como a do poeta Cintio Vitier que, no livro Lo cubano en la Poesía3, acusava o autor de ter escrito um "testimonio de la isla falseado", com afirmações categóricas sobre a sua poesia: "Piñera había convertido a Cuba en una caótica , telúrica y atroz Antilla cualquiera para festín de existencialistas".
De facto, o grupo de Orígenes elaborou uma técnica baseada na memória, nas tradições e nas fábulas. Por seu turno, Piñera desprezou a marca paradisíaca, a expressividade idílica ou as imagens bucólicas, procurando abalar a mitologia cubana pela dessacralização, assumindo a ironia, o coloquialismo formal, a temática "gay" e uma narratividade bem visível, ou seja, tudo aquilo que era adverso ao cânone proposto por Cintio Vitier.
Em Espanha, a obra de Piñera tem sido publicada com regularidade. A edição de La Isla en Peso foi publicada em 2000 e contou com a organização do escritor Antón Arrufat, discípulo de Piñera nos anos difíceis. O livro apresenta a obra poética que não é vasta, mas explica porque , em Cuba, Lezama Lima e Virgilio Piñera são considerados mestres absolutos e antagónicos, daí muitos terem considerado Piñera como "el poeta menos lezamiano de su generación".
A sua poesia faz a síntese perfeita entre o surrealismo, o existencialismo e a negritude decantada de uma maneira distinta dos seus contemporâneos. Como afirmou María Zambrano, "en la poesía de Piñera tiene mucho de confesión al revés". O poeta cria um tom que distancia a palavra poética da conjuntura política. O espaço vital da poesia é a percepção metafórica intensa, como no longo poema que dá título ao volume.
O início fulminante retrata uma realidade insular que abre as portas para uma leitura inovadora, repleta de escárnio melancólico:
"La maldita circunstancia del agua por todas partes
me obliga a sentarme en la mesa del café.
Si no pensara que el agua me rodea como un cáncer
hubiera podido dormir a pierna suelta." 4
1 La isla en Peso, Barcelona, Tusquets, 2000, publicado no jornal Expresso.
2 Antes que Anoiteça, Porto, Asa, 2001.
3 Lo Cubano en la Poesía, Havana, Instituto del Libro, 1970.
4 op. Cit., p. 37.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011


UM PACTO COM A SEVERIDADE 1


Em 1963 surgiu em Espanha o volume Poesía Última2, organizado por Francisco Ribes, que reunia testemunhos e poemas de Ángel González, Carlos Sahagún, Cláudio Rodriguez e José Ángel Valente, entre outros autores. Cinco anos mais tarde é dado à estampa a Antología de la Nueva Poesía Española3, de Luíz Batlló que listava autores como Francisco Brines, Jaime Gil Biedma e Carlos Barral, que testemunharam tanto a Segunda Guerra Mundial como a Guerra Civil espanhola.
Tendo nascido em 1929, em Orense (Galiza), José Ángel Valente publicara na década de 50 as suas primeiras obras, A modo de Esperanza4 e Poemas a Lázaro 5. Com efeito, o poeta era representante de um grupo que desenvolvia as suas experiências após o caudal magnífico da geração de 27. A um jovem daquela altura era difícil não se deixar envolver pelas obras de Pedro Salinas, Jorge Guillén ou Juan Ramón Jiménez.
José Ángel Valente estudara em Santiago de Compostela e em Madrid. A partir de 1958 mudou-se para Genebra onde trabalhou como tradutor ligado às Nações Unidas e foi aí que faleceu em 18 de julho de 2000. Considerado um dos nomes centrais da sua geração, José Ángel Valente demarcou-se dos seus companheiros e foi um crítico acérrimo. De facto, fundou para si uma zona activa onde situou a sua poesia, distanciando-se o máximo do agrupamento geracional ao qual pertencera pela simples arrumação cronológica que nem sempre ajuda um autor. "Caminemos e defendámonos juntos, dicen los medíocres", declarou o poeta, demonstrando assim a independência em relação aos poderes literários espanhóis. A personalidade crítica, a ética pessoal e a individualidade intelectual fizeram deste poeta uma figura exemplar que não se coibiu de criticar autores como José Hierro, Ángel González ou Luís garcía Montero
Creio que Ángel Valente queria chamar a atenção para uma poesia mais essencial e rigorosa, daí o interesse pela tradução de autores como John Donne, Gerard Manley Hopkins, Dylan Thomas, John Keats, Eugenio Montale, Edmond Jabès, Hölderlin - que traduziu para o galego - e Paul Celan.
Não há dúvida de que foi um dos poucos da sua geração a levar o horizonte poético a um limite extremo. Nota-se uma progressão estilística, a experimentação temática e formal. Se, num poema como "El espejo" do segundo livro, há um tom coloquial:

"Remotamente quejumbroso,
remotamente aquejado de fútiles pesares,
poeta en el más venenoso sentido,
poeta con palabra terminada en un cero
odiosamente inútil,
cuento los caedizos latidos
de mi corazón y qué importa?"6

nos poemas posteriores a percepção torna-se mais tensa, concentrada e reflexiva:

"Lo que dije no sé.

La cifra mayor del llanto o de la vida
de quién la podía tener.

Hay un lenguaje roto,
un orden de las sílabas del mundo.

Descífralo.

Porque algunas de sus palabras
asaltarán tu sueño, Agone,
para no gemir
eternas
en lo oscuro"7

A orientação fortemente individualista leva-o a penetrar mais fundo nas tramas da linguagem. O poeta que foi apodado de "culturalista", praticou uma hábil ironia:

"Ahora cuando escribo sin certeza
mi bionotabibliográfica
a petición de alguien que desea incluirme
de favor y por nada
en consabida antología
de la sempiternamente joven senescente
poesía española de postguerra
(...)
cuando escribo
mi bioesquelonotabibliográfica
compruebo minucioso la fecha de mi muerte
y escasa es, digo con gentil tristeza,
la ya marchita gloria del difunto"8

A densidade expansiva da sua poesia desloca-se para diversas frentes, aos poucos o poeta beira a maturidade poética, convocando uma constelação de referências. As belíssimas homenagens recordam Luís Buñuel, Lezama Lima ou Lautréamont, interiorizando a distância do exílio. De certa forma, a marca de equilíbrio e aprofundamento da linguagem dar-se-á ao inserir os ritmos tradicionais no livro Breve Son:

"Quien pudiera andar
sobre las águas verdes
de este mar.

Y por el aire gris
quién pudiera, mar grande,
dejarse ir.

Mar de Muxía
que en sus barcas de piedra
me llevaría"9

O poeta soube sempre extrair novos tons, como se cada livro revelasse uma voz insubmissa. Em Treinta y siete fragmentos, Ángel Valente aprimora as imagens repletas de opacidade metafórica:

"Madre,
el niño homófago
nace en tu paladar,
devora tu saliva,
cae
en el caudal del llanto hasta los invisibles sáurios
de la orilla remota que le tiende tu amor"10

O poeta está sempre em demanda de uma expressão original, a realçar a dicção traduzida na invocação de uma mística poética pessoal intimamente ligada a Miguel de Molinos que o poeta estudou, mas que irá tocar ainda na cultura sufi, nos poetas zen-budistas. O próprio pensamento de Valente reclama uma essencialidade11. Em toda a sua obra parece estar inscrito um pacto com a severidade.
No poema "Punto cero"12, o poeta discorre sobre o abandono da poesia por Rimbaud e a vida enigmática de Lautréamont, e faz a seguinte interrogação final:

"Podríamos nosotros sobrevivirlos?"

É a consciência do poeta confrontado com a sua tarefa, a relação com a linguagem, o
alheamento em relação aos processos que caucionam uma poesia e o perigo de a sua obra perder o rumo.
José Ángel Valente teve a audácia de defender uma moral do poema, o "poema autêntico". Para os indolentes, isto é simples utopia. Contudo, resta ainda uma última inquirição: será que a experimentação da linguagem que define o verdadeiro poeta é um aspecto meramente utópico, mas essencial, ou não?

1 - Obra poética 1 e 2, Madrid, Alianza editorial, 1999; publicado no jornal Expresso.
2 - Poesía Ultima, Madrid, Taurus, 1963.
3 - Antología de la Nueva Poesía Española, Barcelona, El Bardo, 1968.
4 - Op. cit., p. 15 e 71
5 - idem, vol 1, p. 17.
6 - ibidem, p. 71
7 - ibidem, p. 379.
8 - Ibidem, p. 425.
9 - Ibidem, p. 292.
10 - Ibidem, p. 422
11 - Variaciones sobre el Pájaro, Barcelona, Tusquets, 1991; Las Palabras de la Tribu, Barcelona, idem, 1994.
12 - op. cit., p. 142.