quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O cometa Murilo Mendes





Só há pouco tempo a poesia caleidoscópica e surreal de Murilo Mendes foi reunida e publicada no panteão das obras completas onde os mais importantes e consagrados autores brasileiros administram “a posteriori” a sua glória e o reconhecimento tardio. O caso de Murilo Mendes é simbólico, visto que o autor esteve relativamente esquecido no seu país durante os anos em que viveu na Europa.


Roma foi a cidade escolhida, nela ensinando literatura brasileira. A sua obra despertava o interesse de poucos, como os Concretistas que fizeram várias referências ao seu trabalho. O poeta soube extrair o material que, após passar pela simbiose dos sentidos e a sua forma peculiar de captar o universo e de sintetizar a contemporaneidade do seu tempo, ajudou-lhe a erguer uma obra haurida de todos os fenómenos artísticos que estivessem ao seu alcance.


A arquitectura da obra muriliana assenta neste domínio pluridisciplinar. O poeta faz uso das referências às artes plásticas, à música, ao cinema e à literatura criando uma correspondência contínua e ao mesmo tempo interrogando as dissonâncias do mundo e das coisas. Para Giuseppe Ungaretti, que prefaciou a edição de «Siciliana», Murilo «descobre em si aquela hora antiga da história humana em que intelecto, sentimento e sentidos encontraram seu puro, objectivo equilíbrio»2.


As palavras do poeta italiano sobre Murilo testemunham o respeito que o poeta brasileiro granjeou na Europa. A sua residência na Via del Consolato, onde se estabelecera em 1958, era um ponto nuclear onde se conglomeravam as mais diversas figuras da arte italiana daquele período. Era possível vislumbrar aí as paredes ornadas com as inúmeras obras com que era presenteado por amigos como Hans Arp, Arpad Szénes, Vieira da Silva, Georges Braque, De Chirico, Fernand Léger, Magritte, Miró. Em 1987, a Fundação Calouste Gulbenkian organizou a exposição «O Olhar do Poeta», onde se podia contemplar este acervo admirável.


Ainda em vida, a sua poesia chegou a ser reconhecida na Europa com o Prémio Etna-Taormina, em 1972. Um reconhecimento que já conseguira junto a inúmeros poetas estrangeiros com quem travou amizade, tão distintos como Ezra Pound, Henri Michaux, Jorge Guillén, Jean Cocteau ou René Char. As suas relações, em Portugal, não eram só de cunho familiar; criara também um círculo de amizade, como demonstra o livro «Janelas Verdes».


Fruto de um trabalho apaixonado da maior divulgadora da literatura de língua portuguesa na Itália, Luciana Stegagno Picchio, a edição de «Poesia Completa e Prosa» conta com notas e variantes que permitem perscrutar o método de Murilo. Registe-se entre os diversos contributos o de José Guilherme Merquior com «Notas para uma Muriloscopia», seguido pelo texto introdutório da professora responsável pela edição.


Nas suas memórias - «A Idade do Serrote», Murilo Mendes retrata o acontecimento que o marcou na infância e que o levou a tornar-se poeta:”Era 1910, ano que marcou muito na minha vida: a passagem do cometa de Halley»3. Poder-se-ia dizer que a poesia do autor assumiu certa semelhança com o fenómeno cósmico, ou seja, após o período de esquecimento que lhe foi dedicado, regressa para se revelar tão viva e actual.


**


«Querido Murilo: será possível


que você este ano não chegue no Verão


que seu telefonema não soe na manhã de Julho


que não venha partilhar o vinho e o pão


(…)


Hoje escrevo porém para a Saudade


- Nome que diz permanência do perdido


para ligar o eterno ao tempo ido


e em Murilo pensar com claridade -



E o poema vai em vez desse postal


em que eu nesta quadra respondia


- Escrito mesmo na margem do jornal


Na Baixa - entre as compras de Natal



Para ligar o eterno e este dia.»


Sophia de Mello Breyner Andresen




O verso que conclui o belíssimo poema de Sophia é porventura muito conhecido dos leitores portugueses. Talvez não saibam é que foi escrito em memória do poeta brasileiro Murilo Mendes, falecido em Lisboa no pico do Verão de 1975. Foi a última viagem do poeta que passava as férias em Portugal, um hábito cultivado durante largos anos e que resultou nas diversas amizades que deixou nestas passagens estivais.


Natural de Juiz de Fora, Minas Gerais, onde nasceu em 13 de Maio de 1901, legou-nos uma obra variada, explorando um género bastante pessoal, a prosa de viagens. É o caso do livro «Janelas Verdes»4, onde surge Portugal representado numa prosa descritiva e lírica, evocando as paisagens, os homens e as terras por onde passou e que mais o marcaram. A obra oculta um percurso curioso. Guardada durante muito tempo, viria a ter uma pequena divulgação, em Portugal, quando a Galeria 111 publicou uma edição de luxo apenas com a primeira parte, incluindo desenhos de Vieira da Silva, em 1989. O texto teve que esperar a edição da sua Poesia Completa e Prosa, em 1994, para ser conhecido por um público mais amplo. A edição da Quasi vem saldar uma dívida à memória do poeta.


Temos agora a oportunidade de conhecer a sua forma de compreender e interpretar, em simultâneo, um lugar, um instante, uma pessoa. Para Murilo, que cultivara a amizade como «uma das belas-artes», as viagens não eram só turismo. Aproveitava para mergulhar fundo nas coisas. Em «Janelas Verdes» é perceptível o encontro com a tradição da sua língua, e sobretudo com os amigos que acumulou por aqui. Nas passagens por Lisboa manteve contactos com escritores, pintores e poetas. Dedicou textos a cada uma destas personagens que o ajudaram a encontrar o país ao qual esteve ligado por laços familiares por ter casado com Maria da Saudade Cortesão, filha de Jaime Cortesão. Conheceram-se em 1940, altura em que o pai se exilara no Brasil; sete anos depois estavam juntos e em 1952 o casal fez a primeira viagem à Europa. Murilo viera cumprindo uma missão cultural e pronunciou várias conferências em alguns países. Em 1958 passa a viver na Itália, onde assume a cátedra na Universidade de Roma, até ao fim da vida.


Sem colidir com a sua poesia, Murilo amolda um tom na sua prosa em que a frase é utilizada com eficácia, equilibrando a imagem e a expressividade. O poeta doma a língua sob um impulso regenerador, deflagrando novas perspectivas:


“Évora, nome rápido, esdrúxulo (discordo de Fernando Pessoa, que sublinhou o ridículo das palavras esdrúxulas), implica Eva, uma Eva à qual se ajuntasse um r para significar ao mesmo tempo força, mulher e planta (erva), com aquele o central alusivo à esfera armilar pousada sobre uma fonte no Largo das Portas de Moura».


Despontam sempre novos sentidos que o poeta traduz, às vezes, com humor, como na leitura que faz sobre Freixo de espada à Cinta:


“Este o mais terrível de todos os topónimos de Portugal e outros reinos outrora encantados origina-se certamente de uma época em que as árvores se moviam, segundo nos informa por exemplo a tragédia de Macbeth. Quem ousaria dizer que Shakespeare se enganou?”6


Na segunda parte do livro, o autor inverte o movimento, os textos abandonam a evocação citadina, e ensaiam as homenagens a figuras literárias e artísticas como Gil Vicente, Nuno Gonçalves, Mariana Alcoforado, Teixeira de Pascoaes, entre muitos outros.


Com esta edição, podemos descobrir a escrita de um poeta que fundou - juntamente com Jorge de Lima - o que podemos designar de «surrealismo brasileiro», e que resumiu a si mesmo desta forma:


«Não sou brasileiro, nem russo nem chinês


Sou da terra que me diz NÃO eternamente - sou terrivelmente do mundo».



1 Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro, editora Nova Aguilar, 1994.


2 Razões de uma Poesia, São Paulo, EDUSP,1994.


3 Idade do Serrote, Rio de Janeiro, Editora Sabiá, 1968.


4 Janelas Verdes, Lisboa, Quasi Edições, 2003.


5 Op. Cit. p. 48


6 Idem, p. 71





segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A serena desesperada






Nascida no Rio de Janeiro em 1901, Cecília Meireles estreou-se com Espectros (1919), um livro onde o tom parnasiano influenciava a sua escrita, daí a recusa de apresentá-lo na primeira reunião da sua poesia. Perdera cedo os pais e os irmãos, ficando sob a tutela da avó, D. Jacinta Garcia Benevides, uma açoriana que marcou para sempre a vida da autora. A outra personagem determinante fora o marido, o artista gráfico português Fernando Correia Dias, colaborador da Águia, entre outras revistas que animaram a cena literária das primieras décadas do século XX, em Portugal.
Casaram-se no início dos anos 20, e deve-se a Correia Dias o contacto de Cecília com muitos poetas e intelectuais portugueses daquela altura. Visitou Portugal em 1934, encetando uma ampla ronda de encontros, conferências e viagens.
Com a publicação de Viagem, em 1939, Cecília obteve a consagração unânime. Em Portugal, há muito que frequentava as páginas literárias ao atrair a atenção de críticos como José Osório de Oliveira. No Brasil emparelhava o reconhecimento dos seus coetâneos com o Prémio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, que galardoava pela primeira vez uma mulher. Cecília demarcara um espaço próprio, distinto daquele que os modernistas brasileiros defendiam. A autora gravara finalmentea sua impressão digital na história da poesia de língua portuguesa, da qual seria uma referência até à sua morte, em 1964.
No livro Conhecimento de Poesia2, Vitorino Nemésio assegura Cecília era "ao mesmo tempo uma pessoa profundamente inspirada e um estilista criado em todos os estilos, que se casaram no seu. Grande oficial do seu ofício - esta senhora, que não é uma 'femme de lettres', mas um escritor autêntico, é capaz de falar pertinente e freudianamente do andrógino, sem perder pé do poema, e toca em todos os campos por onde a sua poderosa inspiração forrageia com precisão e a propriedade de um humanista que libou o mel de Himeto"3. Apesar do tom superlativo, Nemésio roça alguns dos traços que delineiam a poesia da autora. O estilo hábil e diáfano concentra uma flexibilidade estilística que recolhe todo o género de expressões, distribuindo tais sentidos em parcelas discretas por toda a sua obra. Cecília soube manobrar uma máquina aparentemente complexa: algo de Jorge de Lima de "Anunciação e Encontro de Mira-Celi" repercute em:

"Do fundo da escuridão nascem vagos navios de ouro
com as mãos de esquecidos corpos quase desmanchados no vento
(...)
E a memória de tudo desmanchará suas dunas desertas,
e em navios novos homens eternos navegarão"4

e em Canção parece actuar o tom e a sageza de Manuel Bandeira de Consoada:

"Depois tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas"5

Encontramos um exemplo particularíssimo da sua percepção expansiva no poema antológico "2° momento da rosa", do livro Mar Absoluto:

"e a quem te adora, ó surda e silenciosa,
e cega e interminável rosa,
que em tempo e aroma e verso te transmutas!"6

antecipando o poema de Jorge Luís Borges, "Una rosa y Milton":

"Ó blanca rosa de un jardín borrado
deja magicamente tu pasado
inmemorial y en este verso brilla
oro, sangre o marfil o tenebrosa
como en sus manos, invisible rosa"7

São apenas núcleos expressivos que se conjugam com a profunda consciência da tradição, prolongando-se depois para outras expressões literárias que a autora pesquisou como a poesia hebraica, a chinesa e a indiana, sem esquecer a antologia organizada por ela, Poetas de Portugal, publicada em 1944.
A antologia dada à estampa, foi seleccionada pela própria autora, em 1963. Apresenta uma ampla mostra da sua obra, começando por Viagem, passando por outros livros fulcrais como Romanceiro da Inconfidência, o clima etéreo de Elegia, Retrato Natural, Doze Noturnos de Holanda. É sem dúvida a melhor introdução da sua obra.

1- Antologia Poética, Lisboa, Relógio D'Água, 2003; publicado no jornal Expresso.
2- Viagem, Lisboa, Editorial Império, 1939.
3- Conhecimento de Poesia, Lisboa, INCM, 1997.
4- op. cit., p. 21
5- idem, p. 23
6- ibidem, p.70

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Entre 1994 e 2004 trabalhei como jornalista, em Portugal colaborando em jornais e revistas como Independente, Grande Reportagem, Colóquio-Letras, Camões e Expresso. Foram exatamente dez anos escrevendo reportagens, crítica literária, entrevistas, entre muitos outros trabalhos e dossiês que organizei.
Após regressar ao Brasil, em 2006, fiz uma seleção dos textos que publiquei e pude notar que os trabalhos abrangiam, sobretudo, as edições de poesia publicadas em Portugal. Selecionei os respectivos textos por ordem de nacionalidade dos poetas. Como não poderia ser diferente, a maior parte do que escrevi refere-se à poesia de língua portuguesa. Mas há ainda textos sobre poesia alemã, francesa, espanhola, inglesa e norte-americana.
Resolvi publicar neste blog alguns destes trabalhos, para que pelo menos sobrevivam virtualmente.
Jorge Henrique Bastos





NAS ENTRANHAS DO POEMA :





Far-se-ia um resumo sucinto das linhas seguidas pela poesia brasileira durante o século XX, situando num pólo aqueles que perfilharam o legado da poesia Concretista; no outro, os que assumiram a independência estilística orientados em grande parte pelas lições de Carlos Drummond de Andrade ou João Cabral de Melo Neto. Contudo, arriscaria acrescentar o nome de Ferreira Gullar no último grupo. A obra deste poeta chega a Portugal no momento em que é unanimemente reconhecido como o representante derradeiro das gerações surgidas a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo.

Ferreira Gullar nasceu em 10 de Setembro de 1930, em São Luís do Maranhão. Aos vinte anos mudou-se para o Rio de Janeiro onde colaborou em diversas publicações. Participou na génese do movimento Concretista, mas cindiu com o grupo - Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari -, fundando o Neo-Concretismo, em 1959. Na década de 60 assumiu um posicionamento crítico e ideológico levando-o a aproximar-se da cultura popular. Dedicou-se à crítica de arte e escreveu para teatro em parceria com Oduvaldo Viana Filho e Dias Gomes. O exílio sobreveio em 1971 e o regresso ao Brasil ocorreu no início dos anos 80.

Se concordarmos com Rosseau no «Ensaio sobre a Origem das Línguas»2, a propósito de a metáfora ter sido a primeira expressão usada pelo homem ao dominar a linguagem, poderíamos supô-la como o vestígio linguístico mais remoto do ser humano. Dir-se-ia que é o instrumento que regista e retrata a sua condição animal, a sua memória selvagem. Se a poesia abrange esta tendência, temos em Ferreira Gullar um exemplo análogo.

O poeta procurou contrastar as inúmeras experiências estilísticas que praticou, sem perder o ponto cardeal em busca da sua voz. É nas entranhas do poema como vida e da vida como poema - cujo ponto máximo é precisamente «Poema Sujo» - que Gullar lança a sua rede, pescando assim a sua singularidade, condição vital de todo genuíno poeta que não se contenta com a simples reprodução do real, pelo contrário, quer siderar a linguagem, implodir todo o seu território:

Chão verbal

campos de sóis pulverizados.

As asas da vida aqui se desfazem

e mais puras regressam

(…)

Eu te violento, chão da vida,

garganta de meu dia.

Em tua áspera luz

governo o meu canto.3

Do pendor experimental de “Roçzeiral” ao deslocamento verbal, da prática concretista à assunção das tradições populares - os cordéis “Quem matou Aparecida” ou “João Boa-Morte” - o autor procurou manter uma estrutura poética embebida do ludismo contínuo. Mas é com «Poema Sujo», escrito no exílio em Buenos Aires, que acaba por condensar vida e literatura num poema dilacerante e vertiginoso.

Como o pintor italiano Giorgio Morandi - de quem é admirador -, a experiência do tempo em Gullar é uma preocupação recuperada constantemente, daí as naturezas-mortas delineadas em muitos poemas, as reflexões sobre a vida e a morte, a evocação dos amigos desaparecidos, a consciência do envelhecimento, o distanciamento da juventude mantida viva no fulgor do desejo redescoberto que atravessa o último livro, «Muitas Vozes»:

Se for março

quando o verão esmerila a grossa luz

nas montanhas do Rio

teu coração estará funcionando normalmente

entre tantas outras coisas que pulsam na manhã

ainda que possam de repente enguiçar.

(…)

Mas que pode a morte em face do céu azul?

do escândalo do verão? 4

Atreito às fragmentações vocabulares que suspendem os versos e intensificam o discurso lírico, o poeta parece catar as palavras com uma atenção redobrada para as inseminar com um sentido renovado:

A ferrugem abre suas flores,

é uma sinistra botânica;

e as abelhas vêm,

filhas do ar frio.

Certos pássaros descem

neste campo de armas

que os heróis espiam.

Quem aproveita

O arroz daquele aço?5

O aspecto fragmentário não é mero exercício, mas a tentativa de assimilar a força das palavras, a sua vibração interior:

Poderia escrever na pedra

meu nome

gullar

mas eu não sou uma data nem

uma trave no quadrante solar

Eu escrevo

facho

nos lábios da poeira

lepra

vertigem

cona

qualquer palavra que disfarça

e mostra o corpo esmerilado do tempo

câncer

vento

laranjal 6

Abolidas as experiências, é admirável encontrar o poeta que adquiriu a sageza depois de explorar vários timbres. Gullar deparou-se com uma tensão poética perceptiva, um discurso que revela o corpo segundo uma eroticidade iluminada:

emergias da treva

as coxas o ventre

os seios

eram luas encantadas

e do centro

do teu corpo

a macia estrela negra

me chamava

para dentro de si7

As imagens que cria beiram a sensualidade explícita:

sua história de homens e de bichos

de plantas e de larvas,

de lesmas e de levas

de formigas e outros minúsculos seres

transitando nos talos, nos pistilos, nos grelos que se abrem

como clitóris na floresta.

São sorrisos, são ânus, caramelos,

são carícias de línguas e de lábios 8

O poeta entrega-se à sua condição de amante e redescobre a juventude do prazer:

Hipnotiza-te

com teu guizo

envolve-te

em seus anéis

corredios

beija-te

a boca em flor

e por baixo

com seu esporão

te fende te fode

e se fundem

no gozo 9

Vinicius de Moraes sustentou uma vez que Ferreira Gullar era “o último grande poeta brasileiro”. O tempo só ajudou a confirmar esta premissa.

**

Embora a sua obra tenha sido atraída a diversos campos de expressividade, o poeta infundiu um tom característico, com a lírica coloquial a inquirir o mundo, o tempo e a morte. A partir de «A Luta Corporal»10, o poeta pratica um experimentalismo que atinge a radicalidade no poema “Roçzeiral”, quando a sintaxe é varrida pela desintegração do discurso, e em simultâneo deixa a sua poesia contaminar-se por uma percepção da realidade repleta de apelos subversivos, que o crítico Tristão de Athayde sintetizou com precisão:”O lirismo trágico e subversivo de Ferreira Gullar é um pequeno mundo dos problemas candentes”11.

De facto, a sua poesia deve muito à lição modernista, aquela que reúne Drummond, Bandeira e Murilo Mendes. O poeta parte à procura de uma estilística própria, afirmando aos poucos a sua singularidade:

”Eis porque te destruo, língua,

e deixo minha fala secar comigo”12

O verso fragmenta-se gradualmente na página, anunciando o voo dos poemas concretos e neo-concretos. Ao interpolar na sua poesia tais experiências, o poeta manteve-se atento às mudanças ocorridas na estética literária brasileira daquele momento, sem abandonar a vertente ideológica que irá dominar a sua poesia durante os anos 60 e 70.

Este período caracterizou-se pela polémica com o grupo Concretista de São Paulo e a subsequente divergência. Mas demonstrara quais os recursos que operava, que se manifestam nas imagens envolvidas por uma vertigem solar intensa ou no uso de verbos recorrentes que adensam a temporalidade poética reflexiva.

O período de maior intromissão ideológica dá-se com a série de romances de cordel, mas é no livro «Dentro da Noite Veloz» que a sua poesia acaba por confluir na época de recrudescimento político despertado pelo golpe militar de 64:

“Introduzo na poesia

a palavra diarreia.

Não pela palavra fria

mas pelo que ela semeia.

(…)

É como uma bomba D

que explode dentro do homem

quando dispara, lenta,

a espoleta da fome.” 13

Creio que neste ponto a poesia de Ferreira Gullar chegou a um impasse. Se antes fora impelido a optar pelo discurso vanguardista, agora o poeta terá que escolher uma estilística capaz de representar a urgência de mudança num país socialmente injusto. Resultou deste período o «Poema Sujo», e o poeta arrebatou um lugar merecido na história da poesia brasileira.

1- Obra Poética de Ferreira Gullar, Quasi Edições, 2003, publicado no jornal Expresso.

2 Ensaio sobre a Origem das Línguas, editorial Estampa, 2ª ed., 2000

3 Op. Cit. pg. 72

4- idem, pg. 504

5- ibidem, pg. 75

6- ibidem, pg. 116

7- ibidem, pg. 500

8- ibidem, pg. 505

9- ibidem, pg. 502

10- ibidem, pg 29

11- Toda Poesia, Rio de Janeiro, 1987, José Olímpio

12 - Op. Cit., pg.86

13 - idem, pg. 182